Na montagem, a doutora Nise da Silveira junto a imagens de lentes novas e antigas, um disco de vinil e um tocador de CD. Fonte das imagens: Google. |
” Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: Vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas ajuizadas”.
Nise da Silveira ,psiquiatra, 1905-1999
A doutora Nise tinha razão. Assim como as pessoas, as
coisas, quando perfeitas demais, se tornam chatas e sem vida própria. Mas para
se usar o adjetivo em questão precisamos comparar o que é ou parece chato com
um padrão. E esse teria que ser inverso. Então o que é bacana? Pessoas com vida
própria e com personalidade vibrante no caso de gente. E nos demais casos?
Objetos, coisas, expressões artísticas como a música e a fotografia, por
exemplo? O que pode causar nessas coisas inanimadas algum tipo de diferença que
as faça saltar aos nossos olhos e ouvidos? Para mim a resposta seria a mesma
que para pessoas: personalidade e detalhes. Enfim uma espécie de vida própria,
independente mesmo da vontade inicial do seu criador, o artista.
Para falarmos da chatice temos que ter um padrão do que não
é chato...
E para isso precisamos conhecer para além das coisas que se apresentam
a nós, em um dado momento, tentando nos seduzir com apelos atraentes e com o
aval de experts no assunto. A tal da massificação das opiniões que se torna em
algum momento uma regra a não ser quebrada. Quem tem estofo - isto é – conhece
mais coisas porque simplesmente viveu mais tempo ou conhece mais de determinado
assunto, tem mais chances de comparação. Não precisa ser um profundo
entendedor, mas basta ter visto mais. Dessa forma se torna capaz de comparar.
Em plena era digital, com todo apelo e sedução das coisas e
objetos digitais como sendo altamente precisos e superiores em qualidade,
estamos vendo o retorno do velho analógico. Assim, a indústria de discos de
vinil, depois de décadas quase em extinção, está mais ativa do que nunca e esse
ano a prensagem de LP’s atingiu pela primeira vez, desde o declínio de tiragem
para o CD, a mesma marca de discos digitais produzidos e vendidos. No Brasil o
fenômeno ainda é tímido, mas em outros países as vendas de toca-discos,
agulhas, pré-amplificadores e logicamente os bolachões anda muito bem obrigado!
E os dois só perdem para o MP3 na forma de streaming.
Amplificador valvulado Integre64 da empresa grega Lab12: as válvulas provavelmente nunca desaparecerão do mercado de áudio hi-end. Fonte: http://www.lab12.gr/integre4 |
A razão é apenas uma: nada pode imitar a personalidade do
som analógico. E se esse for ouvido através de um amplificador valvulado (sim...
as válvulas inventadas há quase dois séculos, nunca deixaram de ser produzidas
e apreciada) fica mais difícil ainda reproduzir o som quente e aveludado
proporcionado pela dupla disco de vinil/amplificador valvulado. O certo é que
hoje, apreciadores da boa música investem fortunas não somente comprando
equipamentos de áudio analógico. Gastam dinheiro comprando novos LP’s e na
conservação de grandes acervos de discos antigos.
Na fotografia, que é o teme desse post, vemos algo muito
parecido. Ainda que timidamente. Um sinal: os filmes e as maquinas fotográficas
que os utilizam não foram completamente extintos. Alguns modelos top de linha
são comercializados e utilizados por profissionais exigentes em determinados
trabalhos. Quando se tratam das lentes – as verdadeiras celebridades, depois da
própria luz – a posição é mais confortável para produtores e consumidores.
Vários modelos em várias fórmulas (sim, lente tem fórmula que nem remédio!)
inventados há quase um século, ainda estão nos catálogos dos grandes
fabricantes. E são usadas por quase todos os fotógrafos, profissionais ou
amadores.
Ainda assim, há uma enorme pressão desses mesmos fabricantes
de lentes manuais consagradas para a introdução e massificação das novas lentes
chamadas digitais. E a principal tática é usar a ideia (com variações de
fabricante para fabricante) do “optics with no-compromisse”. E o que vem a ser
isso? Simples: lentes que eles dizem ser “absolutamente perfeitas”, oferecendo
aberturas extremamente rápidas, correção total de aberrações cromáticas e
distorções e foco “cirurgicamente” preciso se estendendo do centro até as
bordas da lente. Essa tendência se
iniciou em 2012/2013 e vem crescendo. E como tudo o que é novidade no ramo da
tecnologia, logo se tornou o objeto do desejo entre muitos fotógrafos
profissionais e amadores. Mas para que mesmo queremos isso???
Como diria a doutora Nise da Silveira, se falasse de
fotografia... “pra que tanta perfeição? Não queiram “curar” demais suas fotos.
Foto perfeita é foto chata!”
Para que necessitamos – fora raríssimas e justificadas
exceções – uma lente e uma foto que tenha foco absolutamente perfeito até nas
bordas (onde nada de interessante acontece)? De que servirá a ausência total de
fringe? Ou a correção de distorções geométricas que nem nossos olhos são
capazes de fazer (e a mente de entender)? Uma foto (ou vídeo) absolutamente
perfeita, do ponto de vista das leis da física ótica, vai ser mais verdadeira,
ou subjetivamente falando, vai ser mais bonita ou interessante? Acho que não. Muito
pelo contrário. A fotografia perfeita, para mim, mente. Não fala da realidade
(ou do sonho) que meus olhos viram por trás da câmera segundos antes de apertar
o botão.
Vejo com tristeza e preocupação alguns fenômenos dessa busca
por “imagens perfeitas”:
- Pessoas vendendo lentes belas e raras por valores
irrisórios (porque se seduziram pelas novas tecnologias sem as conhecerem bem);
- Pessoas deixando de comprar essas lentes por acharem que
estão ultrapassadas ou por preguiça (sim... o autofoco é uma preguiça de
raciocínio!);
- Pessoas que falam de uma perfeição (real, porém subjetiva)
a atingir sem entender o espírito da arte da fotografia.
Essa tendência em busca da melhor(?) lente vem se
intensificando pelo lançamento de câmeras com definições cada vez maiores. E
esse é outro assunto, embora mais discutido, que leva a enganos. Maior
definição para que? Existem câmeras hoje que oferecem resoluções acima dos
40MP! São tão sensíveis que é quase impossível ao fotografo obter um foco
preciso sem uso de tripé ou de lentes com autofoco. Aí os fabricantes
precisaram aperfeiçoar o sistema de foco na câmera e nas lentes. E foi
necessário introduzir, para além das lentes, a estabilização de imagens em
cinco eixos no corpo das câmeras. E lentes com cada vez mais elementos e grupos
de lentes. Tudo isso tem custos. Diretos, no bolso do comprador e indiretos, na
subjetividade da imagem. Fora a confiabilidade desses sistemas.
Uma lente totalmente manual e analógica vai trabalhar por
décadas (ou séculos) sem dar defeitos e te deixar na mão no meio do nada
durante um trabalho. As lentes eletrônicas são delicadas e em algum momento vão
apresentar defeitos. Geralmente na hora mais imprópria e improvável. Além do
custo maior de aquisição, há o custo a médio e longo prazo com manutenção
preventiva e corretiva. Mais elementos e sistemas eletrônicos significam também
esterilizar e padronizar as imagens captadas, deixando pouco espaço para a
criatividade se o fotografo não souber o que está fazendo. E poucos, sabem. Em
parte a culpa é a pressa, a falta de tempo para estudar ou mesmo o pouco
contato com a técnica antiga mas nem por isso menos válida e com outros
sistemas que não os automáticos.
Vejamos alguns casos:
Vi recentemente em um blog (do fotografo Yannick Khong), um gráfico que ele mesmo
criou, mostrando o estado atual de qualidade das lentes em relação ao que ele
denomina “Linha de realismo”. É
interessante notar que quase todas as lentes novas (produzidas a partir de
2013) que tem como apelo esse “compromisso absoluto” com a qualidade ótica,
estão situadas na parte do gráfico fora da linha de realismo. Ou seja: a
imagem, de tão perfeita, passa a não reproduzir mais as imperfeições da vida
real que o olho humano, subjetivamente, percebe. E em consequência disso envia
ao cérebro uma informação que faz com que o observador não acredite na imagem.
Digo subjetivamente porque para a maioria dos leigos – que apreciam a imagem do
ponto de vista da emoção – esses hiperdetalhes não são percebidos
consientemente. Para o olho treinado do fotografo experiente a diferença será
apenas que ele sabe o que está “errado” com a foto, causando nele essa falta de
empatia ou emoção que seriam normais em determinada imagem. Mas os dois
perceberão igualmente essa espécie de “mentira” fotográfica.
No gráfico reproduzido acima, a área verde situa as lentes que, segundo o autor, reproduzem imagens da vida real, ou como nossos olhos enxergam a realidade. Na área vermelha estariam as lentes fabricadas a partir de 2012/13 e que o mercado considera como lentes superiores, porém com uma falta de profundidade de campo específica que ele refere como característica 3D da lente.Fonte: http://yannickkhong.com/blog/2016/2/23/the-problem-with-modern-optics |
Esse mesmo autor fala ainda em um conceito pouco difundido
como característica “humanizadora” do
“olhar” de uma lente: a renderização 3D. Esta não deve ser confundida com o que
se chama de fotografia 3D ou foto estereográfica, mas sim com uma
característica da lente em reproduzir a perspectiva e profundidade de campo de
uma cena da mesma maneira que nossa visão. Talvez porque esse defeito esteja
ficando mais claro agora, com a introdução de lentes super “curadas” de
anomalias óticas. É o mesmo caso subjetivo que, em um primeiro momento
experimentamos ao ouvir os primeiros discos digitais (CD). A expectativa criada
pelos fabricantes antes do lançamento e a massificação da publicidade vendendo
a nova tecnologia como superior ao disco de vinil, nos fizeram acreditar que o que ouvíamos era
melhor e mais preciso tecnicamente. Mentira. E só alguns deram conta, anos mais
tarde, que a qualidade (principalmente a subjetiva) era muito inferior.
Um exemplo disso está nas duas fotos abaixo. Reproduzo a
foto do mesmo autor (Y. Khong) por que ela mostra com facilidade essas características
distintas entre lentes antigas e as novas. Como eu falei antes, esse tipo de
percepção é bastante subjetiva e muitas pessoas poderão olhar as duas imagens e
não perceber diferença quanto a perspectiva. Eu já conheço esse defeito há
muitos anos, desde que comecei a usar lentes eletrônicas, mas não havia visto
uma foto onde isso fosse tão didaticamente mostrado. Fonte:
Nikkor AF 50mm 1.4D (7 elementos) vs Sigma ART 50mm 1.4 (13 elementos sendo 1 Aesférico) Fonte: http://yannickkhong.com/blog/2015/10/4/the-flattening-of-modern-lenses-or-the-death-of-3d-pop |
Em uma paisagem fotografada com grande angular, a distância entre o banco, em
primeiro plano e o edifício ao fundo, é capturada claramente com a lente com
menos elementos e desaparece na lente mais moderna com mais elementos
corretores. As nuances de tons, principalmente no segundo plano estão bem mais
definidas na lente tradicional. A explicação, simplificando bastante, é que a
luz, ao atravessar mais elementos óticos, vai perdendo certas características
refrativas e reflexivas – e esse é o objetivo de mais vidros na lente – que, se
por um lado resolvem problemas de aberrações cromáticas e distorções, por outro
deixam a imagem plana e achatada, ganhando em nitidez e foco de centro a
margem.
Foto: comparação de elementos
Fonte: kenrockwell.com, sigmaphoto.com
Em um outro exemplo, vamos comparar duas fotos diferentes, porem
com o mesmo tema e distancia focal. A primeira foto abaixo foi tirada com uma
lente Zeiss Planar 85mm f1.4 antiga (montagem Contax) fabricada em 1978. A
imagem seguinte, foi clicada com uma Zeiss Otus 85mm f 1.4 fabricada em 2016.
Nesse caso, deixo aos meus leitores a análise pessoal das
fotos. Digo isso porque quero exemplificar outra característica quando
comparamos lentes novas com antigas. A subjetividade. Diferentemente de características óticas
estudadas e cientificamente comprovadas pelas leis da física dos sistemas de
lentes (que também podem causar impressões subjetivas e pessoais), a emoção ou
história de uma imagem está mais ligada a elementos não matemáticos (ou
científicos) e sim às impressões pessoais e particulares que são afetadas por
coisas como gosto, estado emocional e história de vida de cada espectador. O
principal ponto é demonstrar que o excesso de pasteurização (entendido aqui
como tratamento saneador de defeitos) retira, assim como nos alimentos tratados
com o processo homônimo, não apenas coisas indesejadas mas também algumas
características salutares da coisa tratada.
Portanto é preciso entender bem o que se está querendo
captar e transmitir em determinada imagem para, depois disso, selecionar a
lente mais adequada. E, acima de tudo, é necessária muita experiência e
vivencia com uma diversidade de lentes e câmeras, para saber qual escolher. Não
se trata de optar pelo melhor e sim pelo mais adequado ao tema a ser retratado.
Não existe a lente perfeita, a câmera melhor ou a imagem mais tecnicamente
obtida. Imagem é arte e arte é emoção e subjetividade!
Olá Marcelo.gostaria de um opinião sua a respeito de um assunto. Muito se fala que o ideal antes de gravar, é zerar os pre settings de brilho, saturação e contraste da câmera DSLR, para que o trabalho na pós produção tenha melhor resultado no tratamento de cor etc.... Para mim isso não procede quando os arquivos são gravados em MOV ou MP4, somente se se forem em RAW, quando todas as informações estão preservadas. Obrigado
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